SAÚDE MENTAL
SAÚDE MENTAL

 

Pretendemos neste texto introduzir uma discussão teórica sobre o conceito de saúde mental e traçar alguns dispositivos históricos de sua atenção no Brasil.

Trata-se de uma questão de inegável oportunidade e relevância porque, em contraste com o muito que se tem investido no desenvolvimento de modelos teóricos da doença mental, pouco se tem avançado no sentido de construir conceitualmente o objeto "saúde mental". Este viés ou lacuna teórica representa talvez uma ironia, considerando as importantes contribuições da filosofia, da psicanálise e das ciências sociais, em que a assumida centralidade da questão da saúde contrasta com o fato de que, nesses discursos, privilegia-se a doença em detrimento do trabalho teórico sobre a saúde. Não obstante, o processo de construção de teorias estritamente psicopatológicas ou de concepções individuais da saúde sem dúvida poderá ser útil como ponto de partida para este esforço, dado o caráter dialético e multidimensional da díade saúde-doença.

Antes, porém, faz-se importante salientar que o conceito de saúde mental é bastante complexo e, por isso, difícil de se determinar um conceito que pudesse, sozinho, reunir toda essa complexidade que o tema aborda. Apesar disso, tentaremos descrever algumas idéias formuladas a respeito do tema.

 No campo do saber médico, a expressão "saúde mental" se contrapõe a patologias específicas a serem tratadas, tanto de caráter neurológico quanto psiquiátrico. Neste sentido, refere-se a uma clínica médica que congrega conhecimentos e práticas destinados a atender às mencionadas patologias.

Há, ainda, um outro sentido da expressão Saúde Mental. Provém de outro campo de conhecimento e práticas relativas ao psiquismo e a sua manifestação nos seres humanos através do que chamamos "subjetividade". Neste segundo sentido, a noção de "Saúde Mental" se destina à otimização da qualidade de vida das pessoas, através da consideração dos fatores emocionais que agem contra ou a favor do seu bem-estar psíquico e, portanto, da sua vida como um todo.

A psiquiatria, a psicologia, a psicanálise e todas as suas aplicações em termos de pesquisa, de construção de conhecimento e de práticas clínicas, entram neste campo.

Para Winnicott ser saudável é ter seis anos aos seis anos de idade e dez aos dez, assim como é necessário viver a crise da adolescência, o que significa que, em termos de desenvolvimento, a saúde estaria atrelada à maturidade relativa à idade da pessoa. O autor considera que a tendência para o amadurecimento é herdada, pois todos nós nascemos com um potencial para o desenvolvimento e para a integração que, diante de um ambiente facilitador representado pela mãe inicialmente e depois pelo pai e pela família como um todo, segue seu curso natural: da dependência completa à dependência relativa e à independência, que por sinal, nunca é completa. O que se deve buscar é a autonomia, a capacidade de se governar por si mesmo.

            Quando se diz que a independência nunca é completa, refere-se à importância capital dos relacionamentos com pessoas. Sempre dependeremos de alguém, sejam nossos pais, maridos, esposas, líderes, professores, colaboradores, irmãos, filhos, etc. Considerar que somos totalmente independentes seria uma forma de onipotência e isto não é saúde.

            Viver de modo saudável significa sentir medo, vivenciar conflitos, dúvidas, frustrações, tanto quanto as coisas positivas. O mais importante é que a pessoa sinta que está vivendo sua própria vida, assumindo a responsabilidade por seus sucessos e fracassos e aproveitando cada experiência vivida para enriquecer seu repertório pessoal. A capacidade de estarmos abertos para os relacionamentos interpessoais constitui um indicador de saúde mental, pois temos necessidade de relacionarmos nosso mundo interno com o mundo externo ou real, não obstante, é imprescindível que preservemos aquilo que é só nosso, nossa intimidade, nossa vivacidade particular. Neste sentido também não é saudável aderir completamente às expectativas do meio e tornar-se passivo, somente voltado a moldar-se a fim de agradar os outros. Isto implicaria na criação de uma máscara social, uma fachada que pode parecer bela, mas que custa o preço de um mundo interno vazio, onde predomina o tédio, o sentimento de não ser.

            Quando um indivíduo sente que pode ser como é, que pode existir como pessoa real, ele pode ser criativo. "A criatividade é, portanto, a manutenção através da vida de algo que pertence à experiência infantil: a capacidade de criar o mundo" (Winnicott, D. W. Tudo começa em casa.  São Paulo : Martins Fontes, 1989, p. 32.). Em outras palavras, é possível ser criativo em qualquer esfera da vida, isto só depende do modo como se olha para cada situação. Por exemplo, pode-se realizar um trabalho repetitivo sem abrir mão da vida imaginativa. É fundamental que na nossa rotina diária, em meio a tantos afazeres, possa haver um espaço para desfrutarmos daquilo que temos de mais pessoal e íntimo: nós mesmos, nossa vida imaginativa.

 

AS POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL NO BRASIL

            Entende-se como política um conjunto de metas das quais decorrem práticas concretas que se desenvolvem numa relativa continuidade geográfica e temporal.

            Na área da saúde mental, entretanto, nunca existiu uma política específica. Conseqüentemente não se dispõe sequer das informações mais elementares (como as características da clientela, os modos de admissão ao sistema de assistência mental, indicadores sobre terapêuticas etc.) sobre o setor.

            O que se pode tentar empreender nesse campo é um levantamento histórico de como a sociedade brasileira entendeu e se relacionou com as doenças mentais, influenciada pelo quadro internacional.

            No Brasil, o marco institucional da assistência psiquiátrica é o ano de 1852, quando é inaugurado o Hospício D. Pedro II, no Rio de Janeiro, celebrizando a maioridade do imperador. Começou a funcionar em 8 de dezembro  de 1852, havendo, na época, 144 pacientes hospitalizados sob os cuidados dos Drs. José Antonio Pereira das Neves e Lallemont. Naquela época, era um dos melhores hospitais psiquiátricos do mundo. Havia grades, celas de isolamento, quartos fortes, mas existia um esboço de tratamento ocupacional com instrumentos de música, oficinas para trabalho manuais e, sobretudo espaço, claridade e pátios arborizados.

            A partir de então, foram construídos vários hospitais psiquiátricos, sobre os quais, entretanto, a classe médica tinha pouca influência, inclusive na admissão de pacientes.

            Em 1898, com Franco da Rocha, foi construído o Hospício de Juqueri em São Paulo.

            Os anos imediatamente posteriores à proclamação da República marcaram o estabelecimento da psiquiatria científica brasileira. Com a república, a assistência à saúde passou a ser atribuição do Estado e os representantes da classe médica passaram a deter o controle das instituições de saúde. O antigo Hospício D. Pedro II, por exemplo, sob o novo nome de Hospício Nacional de Alienados, teve seu primeiro diretor médico: Teixeira Brandão.

            No início do século XX, o médico Juliano Rodrigues assumiu a direção do Hospício Nacional. Juntamente com Oswaldo Cruz, ele buscou promover um amplo processo de saneamento no Rio de Janeiro. Embora o resultado tenha sido o encerramento dos alienados no asilo, quando possível, havia tentativas de recuperá-los. Nesse período, 31% dos internos eram estrangeiros, fazendo surgir propostas de repatriação destes.

            No início do século começaram a proliferar colônias agrícolas para tratamento de doentes mentais. Numa economia ainda predominantemente agrícola, essas instituições encontraram campo fértil para florescer. Porém, do ponto de vista terapêutico, os hospícios-colônia não cumpriram um papel significativo, tendo servido simplesmente para excluir o doente mental do convívio social.

            Em 1950, depois de dois conflitos mundiais e em meio a um acelerado processo de industrialização capitalista de cunho fordista, uma resolução da Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendava que os governos investissem em ações de saúde mental. Nessa época, alguns dos Institutos de Aposentadorias e Pensões que existiam no Brasil incorporaram parcialmente e incipientemente a assistência psiquiátrica entre seus benefícios.

            Em 1955, a introdução das drogas antipsicóticas abriu novas perspectivas no tratamento dos doentes mentais.

            No final da década de 50, a situação na área de saúde mental era caótica: semente no Juqueri havia mais de 15 mil doentes mentais internados. A superlotação era agravada pelo fato de que a assistência psiquiátrica brasileira não acompanhava as atualizações terapêuticas que se processavam no exterior.

            Somente após 1964, a psiquiatria passou a se caracterizar como prática assistencial de massa, quando começou a abranger os trabalhadores e seus dependentes. Isso fez com que proliferassem entidades privadas de assistência psiquiátrica, ao mesmo tempo em que a rede ambulatorial pública era obviamente subdimensionada. Houve, portanto, um nítido privilegiamento da função produtiva da psiquiatria, fazendo florescer e expandir a indústria hoteleira psiquiátrica.

            As internações triplicaram e, entre os internos nos hospitais psiquiátricos, começaram a aparecer quadros de pacientes neuróticos e alcoolistas.

            O início da década de 70, marcado por um grande aquecimento na economia, passou a demandar cada vez mais mão-de-obra, mesmo a menos qualificada. Nesse quadro, ganhou força a idéia de que o objetivo no convívio social, evitando-se afastá-lo de suas atividades de trabalho.

            Vivia-se o período de “milagre econômico”, fase em que, exposta a jornadas mais extensas, que fizeram aumentar o índice de acidentes de trabalho, a massa trabalhadora amargava a diminuição de seu poder de compra, com reflexos em suas condições de saúde, principalmente nas grandes cidades. Ao longo desse período, o governo tentou intensificar ações de assistência médica emergenciais, exceto na área psiquiátrica.

            A situação de negligência quando à saúde mental persiste, em graus variados, até os dias atuais. Uma situação nefasta, comparável à vivida pelos doentes mentais na Antiguidade ou na Idade Média. Para tentar revertê-la despontam novas possibilidades assistenciais, com base na perspectiva antimanicomial, inclusive sob um novo enquadramento legal.